
[RESENHA] Ó Paí Ó 2 - "A gente se embala / Se embora, se embola / Só para na porta da igreja / A gente se olha / Se beija, se molha / De chuva, suor e cerveja". Esta música de Caetano Veloso não toca no filme, mas foi inevitável lembrar dela durante a metragem do longa da Viviane Ferreira - diretora que já tinha mostrado seu talento em "Um Dia com Jerusa". O que vemos aqui, como também tinha acontecido no primeiro, é uma ode ao território e a magia baiana. Funciona quase como um contemporâneo brasileiro do clássico gênero “city symphony”, em que a cidade adquire uma materialidade que a constitui como um personagem. Toda essa atmosfera muito bem construída pela montagem videoclipeira (alô, Natara Ney e Guta Pacheco!) e a direção de arte cuidadosa (alô, Raquel Rocha!) fazem compensar o roteiro simples tanto em história como em construções dramáticas substanciais. Se o primeiro “Ó Paí Ó” impressionava pela capacidade de criar diversos blocos narrativos para os personagens principais, neste, mais leve e menos melodramático, o que mais marca é a rede de afetos em torno de Roque (Lazaro Ramos) e sua captação de todo gingado baiano - aquela corporeidade que enfrenta barras pesadas, mas mantém a musicalidade e a cadência para seguir adiante.
[RESENHA] Black Rio! Black Power! - O documentário de Emilio Domingos (cineasta que já nos presenteou com “Deixa na Régua” e “A Batalha do Passinho”) trabalha todo em cima dos depoimentos de participantes importantes do fenômeno cultural dos bailes de soul music, que tiveram seu auge nos anos 70. Construção de identidade negra, transações territoriais no RJ, enfrentamento ao racismo, denúncia contra a lei da vadiagem, perseguição da ditadura, relações com o Pantera Negra americano e com o crescente Movimento Negro brasileiro, surgimento da Banda Black Rio, mudanças para a era Disco - estes são alguns do temas trabalhados em uma ótima costura entre os discursos, dando a sensação que os entrevistados estão conversando entre eles. Com mais fotos do que vídeos, a edição de som do filme faz vislumbrar aos espectadores mais novos como eram as aparelhagens de som do Soul Grand Prix e da Noite do Shaft: a profusão de roupas estilosas e cabelos crespos na construção de uma auto-estima negra que não era estimulada na sociedade no dia a dia. Mais do que mera diversão, o caráter político da festança é muito bem marcado e o filme evita, com sagacidade, qualquer clemência por nostalgias (afinal, temos em frente o funk e o hip-hop como manifestações atuais carregadas de conteúdo revolucionário e potência negra).
Estreias no cinema (a partir de 30/11) - O grande destaque dessa semana é a estreia de "Folhas de Outono", novo filme do fabuloso cineasta filandês Aki Kaurismäki, dono de uma ironia fina sobre a existência humana e enaltecedor da pureza nas relações sociais. Não é de se esperar menos que a categoria de "obra-prima" deste romance vencedor do Prêmio do Júri no último Festival de Cannes. Outro destaque é "Monster", novo do Hirokazu Kore-eda, diretor com "Assunto de Família" e "Ninguém Pode Saber" nas costas e que reforça mais uma vez o olhar para o drama na perspectiva das crianças. Do time nacional chega “Pedágio”, vindo com muito elogios do Festival do Rio, e retratando a juventude no contexto da “cura gay”; vencedor do Prêmio Teddy (destinado para produções LGBTQ+) do Festival de Berlim, “Três Tigres Tristes” também narra a juventude homossexual, agora dentro do contexto da pandemia; o infantil “As Aventuras de Poliana”, a crítica social de "Eu sou Maria", o documentário de natureza "Diário de uma Onça" e o thriller com Paola Oliveira, "Bala Sem Nome" completam as escolhas nacionais. Dentre o cinemão mais comercial, o terror "O Jogo da Invocação" traz os atores de Stranger Things e Sex Education brincando de irritar o demônio; "Digimon Adventure 2" vai animar a garotada; e mais um veículo para Nicolas Cage jogar sua canastrice pode ser conferida no "Plano de Aposentadoria". Completam esta extensa lista de estreias (que mostra que o cinema físico ainda está vivo na pós-pandemia), a cinebiografia do dramaturgo Luigi Pirandello em "A Estranha Comédia da Vida" e "Os Segredos do Universo por Aristóteles e Dante", mais um exemplo de filme de jovens LGBTQ+ - dessa vez centrado na cultura mexico-americana e derivado de um best-seller de Benjamin Alire Sáenz.
Vencedores dos Prêmios Gotham - Das premiações precursoras da corrida ao Oscar, os Gotham são destinados para filmes independentes. Estreia da coreana Celine Song, “Vidas Passadas”, narra o reencontro de dois amigos após 20 anos. A película desbancou em “melhor filme” a brilhante Kelly Reichardt em “Showing Up” - drama em que Michelle Williams interpreta uma escultora -; o romance LGBTQ+, "Passagens", do renomado Ira Sachs; a interferência russa nas eleições americanas de “Reality”; e o “A Thousand and One” drama de temática racial da estreante A.V. Rockwell (que, curiosamente, desbancou o próprio “Vidas Passadas” na categoria de melhor direção de estreia). Último vencedor do Festival de Cannes, o francês "Anatomia de Uma Queda" venceu a categoria internacional - além de ter abocanhado o prêmio de roteiro. Para mim me pareceu um suspense policial de pouquíssimo carisma e bastante confortável com os códigos do gênero, opinião que confesso estar praticamente sozinha frente à sua aprovação consensual. O filme deixou para trás, “All of Us Strangers” do britânico Andrew Haigh, elogiado por sua obra de temática LGBTQ+; o novo mindfunk do grego Yorgos Lanthimos, "Pobres Criaturas"; o mexicano “Tótem”, de Lila Avilés, drama familiar de elogiada sensibilidade; e o novo filme do sempre interessante Jonathan Glazer, "The Zone of Interest" (teaser aqui), produção polonesa que investiga os horrores de Auschwitz. Na categoria Documentário a vitória foi para mais uma mulher - Kaouther Ben Hania por "Four Daughters" - um relato sobre a interferência do Estado Islâmico em uma famíla tunisiana. Também competiam "20 Days in Mariupol" sobre a Guerra na Ucrânia; o acompanhamento de uma clínica ginecológica em "Notre Corps"; a história de pescadores indianos frente a poluição no "Against the Tide"; e "Apolonia, Apolonia" que segue por 13 anos a vida de uma jovem artista francesa. Por fim, as categorias de atuação (sem separação de gênero) foram destinadas para Lily Gladstone e Charles Melton, na performance principal e coadjuvante, respectivamente. A primeira interpreta uma desbravadora em viagem pela fronteira entre o Texas e México em “The Unknown Country”. Já Melton - em "May December" do fantástico e primordial Todd Haynes (entrevistado em inglês aqui) - atua como um jovem marido que se vê envolvido na relação da esposa com uma atriz que vai interpretá-la - em filme que estreia no dia 1º de dezembro na Netflix.
Confira aqui todos indicados desta premiação que também destaca as séries televisivas.
Todos odeiam o Trump - Ainda sobre os Prêmios Gotham, em nível político o destaque da cerimônia foi o discurso vigoroso de Robert DeNiro contra o ex-presidente Donald Trump. Ao que parece sua fala foi boicotada e o teleprompter desligado - o que fez ele continuar discursando lendo no celular. “Mas com todas as suas mentiras, ele [Trump] não consegue esconder sua alma”. Veja aqui [em inglês]: www.youtube.com/watch?v=EKSktq30pK4
Para quem gosta do Brasil vencendo prêmios - O festival francês Entrevues Belfort premiou nosso cineasta mineiro André Novais Oliveira - que se destacou com uma carreira de curtas e com os longas "Ela volta na quinta" e "Temporada" - pelo seu mais recente filme: “O dia que te conheci”, exibido no último Festival do Rio e na Mostra de São Paulo. A película conta a história de um bibliotecário com dificuldades de acordar, atrasando sua rotina de trabalho - até que tem sua vida mudada ao conhecer uma mulher interpretada pela força da natureza que é a atriz Grace Passô. Lembrando que recentemente, “O dia que te conheci” também ganhou menção honrosa na Mostra Latinoamericana do prestigiado Festival Mar Del Plata, enquanto o prêmio principal desta Mostra foi para o chileno "Otro sol" de Francisco Rodríguez Teare.
Novas produções anunciadas - O fundo Eurimages anunciou financiamento em novos filmes de importantes diretores: "Silent Friend" (de Ildikó Enyedi, realizadora de "Corpo e Alma" e "A História da Minha Mulher"); "The Captive" (de Alejandro Amenábar, autor de "Mar Adentro" e "Os Outros"); "The Moon Is a Father of Mine" (de George Ovashvili, diretor de "A Ilha do Milharal"); Gavagai (de Ulrich Köhler de "A Doença do Sono" e "In My Room"). Além destes, outros 25 filmes também receberão o incentivo. // Outro diretor relevante que já está rodando uma nova produção é Alain Guiraudie, realizador de "Estranho no Lago" e "Na Vertical", que chegará em 2024 com "Miséricorde". Além da direção é de destacar que a fotografia é assinada - como foi em “Estranho...” - por Claire Mathon, responsável também pela preciosidade que é “Retrato de Uma Jovem em Chamas”. Por fim, da mesma produtora, CG Cinéma, foi anunciado também um novo Leo Carax, um filme-ensaio deste inventivo diretor francês com o nome de "C’est pas moi". Só vem!
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