top of page

Esquerda, Direita e o Mapa Político da Pré-História

ree

Queridos leitores e leitoras, uma pequena novidade antes de começarmos: a partir de agora, nossos encontros serão mensais. Não por preguiça, juro. Mas porque decidi trocar a espuma da conjuntura pela densidade das ideias. Menos correria atrás da notícia do dia, mais mergulho em temas de fôlego, filosóficos, políticos e económicos – sempre com aquele tempero polêmico que vocês já conhecem. Em vez de perseguir a maratona dos fatos, vamos parar para pensar o que há por trás deles.


E, para inaugurar essa nova fase, nada mais justo do que revisitar dois rótulos tão velhos quanto insistentes: esquerda e direita. Categorias nascidas na Revolução Francesa, quando deputados se organizavam conforme a posição dos assentos na Assembleia – à esquerda, os que queriam mudar; à direita, os que preferiam conservar. Simples, quase elegante. Mas convenhamos: usar esse mapa em pleno século XXI é como tentar guiar-se hoje com uma bússola emprestada de Cristóvão Colombo. O risco de se perder é maior do que a chance de chegar a algum destino.


Chamar alguém de “esquerdista” ou “direitista” é, no mínimo, um exercício de preguiça intelectual. Serve mais para rotular do que para compreender. É como aplicar sanguessugas na medicina: pode ter feito sentido um dia, mas hoje é apenas constrangedor. A globalização, a revolução digital, a crise climática, a financeirização da economia – nada disso cabe nos frascos do século XVIII. Ainda assim, despejamos o presente nesses recipientes quebrados.

Vejamos alguns exemplos. É de esquerda defender impostos sobre grandes fortunas? Parece que sim. Mas será de direita distribuir benefícios sociais? Pois bem, Fernando Henrique e Lula disputam até hoje a paternidade do Bolsa Família, enquanto Viktor Orbán, ícone da ultra direita húngara, distribui políticas sociais dignas de um governo social-democrata.


E os Estados Unidos? Bastião do liberalismo, mas um liberalismo que raramente aparece na prática. O país vive de subsídios agrícolas, salvamentos bancários e incentivos industriais que fariam qualquer defensor do livre mercado torcer o nariz. E Donald Trump, o republicano celebrado como símbolo da direita liberal, foi a personificação desse paradoxo: adotou tarifas punitivas contra vários países, incluindo o Brasil, em nome do “America First”. Protecionismo agressivo, intervencionismo econômico e retórica patriótica: um verdadeiro híbrido que desafia qualquer classificação da velha régua política.


Onde, então, encaixar um governo assim? Liberalismo antiliberal? Direita protecionista? A resposta é simples: não encaixamos.


E se olharmos para a China, o problema fica ainda mais evidente. Um regime de partido único, com economia de mercado híbrida, Estado fortemente interventor, censura intensa e crescimento tecnológico acelerado, tudo isso se auto definindo “socialista”. Na prática, combina políticas que na lógica ocidental seriam de direita e de esquerda, sem se encaixar em nenhuma das duas categorias. O resultado é um país que cresce e inova sem jamais se submeter à velha régua da política europeia do século XVIII.


A política contemporânea é mais um supermercado em liquidação: cada governante pega da prateleira o que lhe convém, mistura agendas liberais com programas assistenciais, e ainda joga uma pitada de moralismo religioso ou de identitarismo progressista para dar sabor. O resultado é um híbrido grotesco, impossível de ser encaixado na velha dicotomia. Mas lá estão comentaristas, militantes e até acadêmicos insistindo na caricatura, como se o mundo fosse uma sala de aula com carteiras alinhadas à esquerda e à direita.


O problema é que essa simplificação, além de falsa, é útil – útil para políticos que preferem se esconder atrás de rótulos do que explicar contradições. Um governo que privatiza se apresenta como “progressista na economia”. Outro que estatiza bancos posa de “defensor do povo”. O eleitor, coitado, acredita que está escolhendo entre caminhos distintos, quando na prática só muda a embalagem do mesmo produto requentado.


Seria mais honesto criarmos novas categorias: política dos interesses versus política dos valores; gestores do sistema versus questionadores do sistema; ou, quem sabe, política para dentro (fechada no umbigo nacional) e política para fora (atenta à engrenagem global). Qualquer esquema seria mais esclarecedor que a régua de Robespierre.

Mas abandonar a dicotomia exige coragem.


“Esquerda” e “direita” funcionam como óculos mal graduados: deformam a visão, mas dão a sensação de nitidez. Retirá-los exige reaprender a ver – e isso dá trabalho. É mais fácil continuar usando, ainda que o resultado seja grotesco. Daí surgem absurdos como “fascismo de esquerda” ou “comunismo liberal”, expressões que fariam rir se não revelassem a confusão conceitual em que vivemos.


O pior efeito desse anacronismo é alimentar a polarização. Se só existem dois lados, cada discordância me empurra para o campo inimigo. Critiquei um governo dito progressista? Virei reacionário. Apontei abusos de um conservador? Comunista. O debate público vira ringue de boxe: não há espaço para nuance, apenas para pancada.


Por isso, talvez seja hora de aceitar que “esquerda” e “direita” pertencem ao museu das ideias. Foram úteis em seu tempo, mas hoje são ferramentas enferrujadas.


Precisamos de novas palavras, novos mapas, novas categorias para descrever um mundo que não é mais o de 1789. Enquanto não tivermos coragem de fazer isso, estaremos condenados a discutir smartphones com o vocabulário da Revolução Industrial.


E deixo uma última provocação: imagino que este texto renderá críticas de todos os lados – mas, sejamos honestos, mais da esquerda. Afinal, se há algo em que esquerda e direita ainda concordam é no desgosto de serem desafiadas. Pois bem, missão cumprida.

Comentários


banner niteroi NQQ 300x250px 25 6 25.jpg
Ativo 4_2x.png

© 2023 | TODOS OS CONTEÚDOS DO RADAR TEMPO DE NOTÍCIA PODEM SER

REPRODUZIDOS DESDE QUE NÃO SEJAM ALTERADOS E QUE SE DÊEM OS DEVIDOS CRÉDITOS.

  • https://api.whatsapp.com/send?phone=552198035-5703
  • YouTube
  • Instagram
  • Facebook
bottom of page