Fonte: Agência Pública / Autora: Natalia Viana / Edição: Ed Wanderley / Foto: AF Rodrigues
“Obrigada por nunca esquecer da gente”, diz, ao telefone, Luciana dos Santos Nogueira, viúva do músico Evaldo Rosa, alvejado por nove tiros de fuzil em 7 de abril de 2019. O agradecimento à reportagem da Agência Pública revela muito sobre o seu maior temor: que o caso caia no esquecimento.
Para ela, os militares foram condenados em primeira instância pela Justiça Militar, mas a justiça ainda não foi feita.
O tenente Ítalo da Silva Nunes, que comandava a operação, foi condenado a 31 anos e seis meses e outros sete militares foram condenados a 28 anos cada um. Mas continuam em liberdade até o julgamento do recurso ao Superior Tribunal Militar (STM), que será realizado nesta quinta-feira, 29 de fevereiro. Para Luciana, por serem militares, “eles acabam tendo mais regalias, acabam sendo diferenciados”.
Enfermeira de cuidados paliativos para pacientes terminais, ela conversou com a Pública entre um plantão e outro no hospital onde trabalha no Rio de Janeiro, e explicou que está com dificuldades para pagar a passagem para vir ao julgamento em Brasília. Além de Evaldo Rosa, a própria Luciana Nogueira, o filho do casal, então com 8 anos, e o seu pai foram alvejados quando viajavam pela estrada do Camboatá, em Guadalupe, zona sul do Rio, a caminho de um chá de bebê de uma amiga. As 62 balas disparadas contra o carro atingiram Evaldo e o pai de Luciana, que sobreviveu. Ela arrancou o filho do carro e se esconderam ao lado de uma caminhonete estacionada. Pouco depois, o catador de recicláveis Luciano Macedo tentou abrir a porta para ajudar Evaldo. Foi fuzilado pelos militares. Também morreu.
Quase cinco anos depois, Luciana guarda daquele dia não apenas a eterna ausência do marido, seu namorado de infância, mas também os traumas que ela e seu filho carregam. “Nunca mais passei por onde aconteceu. Passei a ter medo, saudade, tristeza, uma mistura de sentimentos.” Já o filho, hoje com 12 anos, ela diz que teve que amadurecer muito rápido. “Infelizmente, ele deixou de ser criança.”
Hoje, ele recebe tratamento psiquiátrico e psicológico. “Ele ficou com ‘toque’; se ouvir muito barulho, ele tem um gatilho, fica trêmulo. Se a gente fala um pouco mais alto, volta aquele barulho que ele ouviu no dia 7 de abril.”
O caso já teve dois julgamentos anteriores no pleno do STM. No primeiro, a respeito do pedido de habeas corpus para os militares que estavam em prisão preventiva, a corte decidiu por ampla maioria que eles deveriam responder ao processo em liberdade, por 11 votos a três. Em outra votação, em 2021, a defesa dos acusados pedia o anulamento do julgamento por alegar que fora “surpreendida” com provas durante o julgamento em primeira instância. Dessa vez, a corte rejeitou unanimemente o pedido da defesa.
O Superior Tribunal Militar é composto por cinco juízes civis e dez militares da mais alta patente, sendo quatro do Exército, três da Marinha e três da Aeronáutica.
Quem vai representar os réus é um advogado com longa trajetória em defender militares: Rodrigo Roca, conhecido por ter entre seus clientes generais acusados de tortura durante a ditadura militar e os militares acusados do fracassado atentado a bomba no Centro de Convenções Riocentro, em maio de 1981. Roca também é advogado de Flávio Bolsonaro.
Mesmo assim, Luciana Nogueira não perde a esperança. “A Justiça Militar precisa dar uma resposta, para mostrar que no Brasil a justiça é feita. Porque no Brasil, eu mesma digo às vezes, não existe justiça, principalmente para pobre.”
Evaldo Rosa foi morto em meio a uma operação militar ilegal, a Operação Muquiço, como revelou uma investigação da Pública.
Cinco anos depois, como você vê o assassinato do Evaldo?
Aquele acontecimento eu continuo vendo como se tivesse acontecido ontem. Não tem como esquecer. Vai estar sempre presente na minha vida, vou levar ele até o meu fim. Isso vive comigo diariamente, por mais que a gente tente seguir a vida, o que é necessário, porque a gente precisa caminhar, mas vai seguir comigo a todo momento.
E eu acabo achando que a Justiça no Brasil acaba sendo muito lenta. Acredito que a justiça não foi feita, a gente sabe que eles têm o direito de recorrer, mas eu tenho muito receio da impunidade.
Você acredita na Justiça?
É muito difícil acreditar na Justiça no Brasil, né? E eu ouço dizer que eles [os militares] não têm antecedentes criminais, que têm ficha limpa. Então fico com medo de que não vai acontecer nada; que eles vão sair impunes.
Isso mexe com a minha mente. Porque o Duda [Evaldo Rosa] era uma pessoa do bem, que não oferecia perigo nenhum para eles naquele momento. Eu perdi minha vida, minha família perdeu uma vida.
A defesa alega que outra atitude era “impossível” naquele momento dos disparos…
Claro que era evitável. Não era para ter acontecido o que aconteceu, porque era uma família do bem que ia para um chá de bebê, para comemorar o nascimento de uma criança. A atitude deles é irreparável. O que eles fizeram com a minha família e o meu esposo não tem justificativa. Mas a nossa Justiça é falha, então o meu medo é que isso não dê em nada.
Eles precisam pagar pelo que fizeram. Deixaram um filho que chora todos os dias pelo pai, que é cheio de sequelas, uma criança que vai para a escola cheia de medos e traumas. Eles precisam pagar para que não aconteça com mais pessoas o que eles fizeram.
Logo depois do crime, você me contou que mudou para longe de Guadalupe, onde vocês dois cresceram. Como isso continua afetando você e seu filho?
Sim, isso me afetou muito. Tivemos que deixar o nosso imóvel, nunca mais passei por onde aconteceu; passei a ter medo, saudade, tristeza, uma mistura de sentimentos. E procurei não mais ir no bairro onde morei a vida toda. Meu filho também não gosta de passar por lá, não voltei mais à minha casa. Porque a saudade que a gente tem, mesmo sendo lembranças boas, ainda dói.
Vai doer até o nosso último suspiro.
Seu filho recebe tratamento até hoje?
Ele faz tratamento psicológico e psiquiátrico. Ele faz reflexologia para controlar a ansiedade. Ele ficou com “toque”; se ouvir muito barulho, ele tem um gatilho, fica trêmulo. Se a gente fala um pouco mais alto, volta aquele barulho que ele ouviu no dia 7 de abril.
No ano passado, você fechou um acordo com a Advocacia-Geral da União, que aceitou pagar uma indenização de R$ 2 milhões e uma pensão mensal para você e seu filho. Como foi esse processo? Você sente que a Justiça cível foi mais célere?
Olha, não vai ter milhões que vão conseguir apagar o que aconteceu ou trazer o meu esposo de volta – ou aliviar a minha dor. Eles foram um pouco mais rápidos em relação à pensão, que já estão pagando. Mas o acordo incluiu um precatório, ou seja, ainda demora a ser pago.
Mas, pelo que aconteceu, da forma como aconteceu, eu acho que deveriam indenizar logo, porque contra fatos não há argumentos.
As pessoas me perguntam por que eu assinei esse acordo. Porque eu pensei: “Eu tenho vida para ficar brigando com eles na Justiça por tanto tempo?”. Eu estou brigando com o Exército, né?
É algo que mexe muito com o meu psicológico e o psicológico da nossa família, então resolvi aceitar, sim. E bola pra frente.
Você mencionou que está brigando com o Exército. Você acredita que, por serem militares, os réus estão recebendo um tratamento diferente?
Com certeza, eles têm, sim. Acabam tendo mais regalias, acabam sendo diferenciados.
Oito militares foram condenados na primeira instância a penas que vão de 28 a 31 anos de prisão em regime fechado. Você considera essa pena justa? Acha que o STM deveria manter essas penas?
Eu acho que deveria ser maior. Porque assim serviria de lição para muitos, para que não existisse o próximo. Eu ficaria muito triste mesmo se caso não ocorresse. Como eu sei que não dá pra ser maior, eu espero que ela mantenha. Eu preciso ter fé que eles não vão sair pela porta da frente.
A Justiça Militar precisa dar uma resposta, pra mostrar que no Brasil a justiça é feita.
Porque no Brasil, eu mesma digo às vezes, não existe justiça, principalmente para pobre.
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