Do “Quinto dos Infernos” ao Split Payment: a nova Inquisição Fiscal brasileira
- Zé Maia
- 14 de out.
- 3 min de leitura

Nos tempos coloniais, o povo brasileiro amaldiçoava o chamado “quinto dos infernos” — o imposto de vinte por cento cobrado pela Coroa Portuguesa sobre todo o ouro extraído no Brasil. Era o símbolo máximo da exploração e da subjugação: a metrópole enriquecia enquanto a colônia sangrava. Séculos depois, o país se vê diante de uma nova versão dessa velha história, agora revestida de tecnologia e retórica modernizadora. A partir de 2026, entra em vigor o Split Payment, o novo sistema de cobrança automática de tributos que promete eficiência, mas ameaça reproduzir a mesma tirania fiscal que outrora acorrentou o povo ao peso da Coroa.
O “quinto” colonial financiava os luxos da realeza e o poder de Lisboa, sem oferecer qualquer retorno à terra que o produzia. O ouro extraído das minas de Minas Gerais sustentava a nobreza europeia, e quem não pagasse o imposto era perseguido, confiscado e, por vezes, condenado à morte. Não à toa, o termo “quinto dos infernos” entrou para o imaginário popular como sinônimo de opressão e revolta. Hoje, a semelhança é perturbadora: o novo sistema fiscal, em nome da transparência e do combate à sonegação, criará uma máquina de arrecadação automática, capaz de extrair quase 29% de cada transação comercial no instante em que o pagamento é feito — antes mesmo de o comerciante tocar no dinheiro.
Diferente do passado, o açoite não é mais físico, mas digital. No modelo de Split Payment, o valor pago pelo consumidor é dividido automaticamente entre o empresário e o Estado. O comerciante deixa de receber o total da venda e vê sua receita ser “fatiada” no ato: uma parte segue para o Tesouro Nacional, outra para o governo estadual e municipal. Em tese, é um sistema que simplifica o recolhimento de impostos; na prática, representa a perda total de autonomia sobre o próprio caixa. Pequenos e médios empreendedores, que dependem do fluxo diário de capital para pagar fornecedores, funcionários e reinvestir, serão os primeiros a sentir o golpe. Sem capital de giro e sem fôlego financeiro, muitos simplesmente não resistirão.
A história se repete — com outro nome, mas o mesmo enredo. Se no século XVIII o garimpeiro via sua pepita de ouro virar tributo antes de cruzar o Atlântico, agora o pequeno comerciante verá seu faturamento evaporar antes de chegar à conta. A diferença é que, no passado, ainda havia a chance de esconder um grama de ouro da balança da Coroa. Hoje, com sistemas digitais integrados, algoritmos e cruzamento instantâneo de dados bancários, o Estado torna-se onipresente, infalível e insaciável.
O resultado é previsível: a quebradeira em cadeia. O pequeno fecha as portas, o médio demite, o grande reduz investimentos. O Estado, ao tentar garantir arrecadação antecipada, destrói justamente a base que sustenta a economia real. E, como nos tempos da Inquisição, a justificativa é moral: dizem que é “pelo bem do país”, “pela justiça fiscal”, “pela transparência”. Mas o discurso que se apresenta como salvação pode, novamente, ser a sentença de ruína de quem produz.
O Split Payment não é apenas um mecanismo de arrecadação; é uma nova forma de controle econômico e social. O comerciante deixa de ser contribuinte e passa a ser um súdito fiscal, vigiado em tempo real. A cada venda, o sistema decide quanto ele pode ou não receber — uma intervenção direta e silenciosa na liberdade de empreender. Como no século XVIII, a mão do Estado se faz pesada, e o castigo vem travestido de progresso.
Três séculos se passaram desde o “quinto dos infernos”, mas o inferno, ao que parece, mudou apenas de forma. Se antes o ouro financiava palácios e guerras em nome da Coroa, hoje o lucro do trabalho brasileiro financia uma máquina burocrática cada vez mais voraz. O nome é novo, o discurso é moderno, o meio é digital — mas o fim é o mesmo: tomar o que é do povo para sustentar o peso do próprio Estado.
O Brasil, em nome da eficiência tributária, corre o risco de transformar a liberdade econômica em ficção. No lugar da antiga senzala fiscal, surge o novo calabouço eletrônico — onde cada transação é vigiada, cada centavo é rastreado e cada cidadão, inevitavelmente, se torna servo do sistema.
“O ouro mudou de forma, mas o inferno continua o mesmo.”
O presente artigo não responde necessariamente na posição editorial do canal.









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