top of page

Artigo: Qual é a porta de saída à extrema pobreza?

Frases falsas produzem mentalidades dóceis. E mentalidade dócil é tudo que se exige para manter o status-co das coisas. Foi exatamente esta reflexão que veio à mente quando esses dias, a convite do Observatório de Políticas Públicas da Universidade Federal do Ceará, participei de uma palestra sobre a pobreza extrema. Nos concentrávamos no Ceará em função do forte declínio dos números oficiais. De pronto, reconhecemos que por se tratar de um tema espinhoso para qualquer acadêmico, é ainda mais para os técnicos que estão na ponta a executar as políticas públicas nesta área. Sobre esse assunto uma pergunta recorrente chama atenção, quer seja pelo seu cinismo, quer seja pela sua repetição ou mesmo por sua inocência: qual é a porta de saída à extrema pobreza?


Importa lembrar que, além dos adjetivos mencionados acima, trata-se de uma pergunta descontextualizada do chão da realidade. Isso porque há certo incômodo, por parte da elite, em “aceitar” que uma parcela da riqueza seja destinada a eliminar a fome daqueles que não “contribuem” para a sua construção. Para não expressar isso de maneira tão direta, a elite elaborou uma pergunta mais palatável: qual é a saída? Por se tratar de uma pergunta lógica, ela carrega em si os perigos da desresponsabilização coletiva. Assim, todos nós que não estamos na zona da pobreza passamos, voluntária ou involuntariamente, a dar voz a essa pergunta, reproduzindo-a de forma casuística, mas com forte relevo sistêmico — como quem busca o conforto do lugar-comum: qual é a saída?


Inicialmente, é preciso lembrar que o conceito de pobreza é algo muito delicado e que merece muita atenção. Havia boa razão na fala de Milton Santos ao afirmar que “a pobreza é algo fácil de ver, mas difícil de definir”. Com esse olhar, dediquei-me a enfrentar a conceitualização do tema na tese A Dinâmica Social da Pobreza, em que defino a pobreza por meio de ciclos e como consequência direta da ausência de cidadania. Neste trabalho, sustento que existem três ciclos da pobreza: a desigualdade, a exclusão social e a fome. É neste último que reside a pobreza extrema, cuja permanência tem efeitos deletérios sobre a filiação social. É precisamente a este ponto que dedicarei esta reflexão.


Na prática, se analisarmos mais próximo o fenômeno da pobreza perguntaríamos de fato qual seria a sua porta de entrada. Veríamos com clareza que a principal e mais larga delas é o mal uso da economia. Ou seja, a capacidade de gerar e concentrar riqueza. Riqueza esta que todos contribuíram para produzir, mas que um pequeno grupo, possivelmente o mesmo que criou a pergunta, se apropria de forma intensa. Claro que a pobreza tem origem em outras causas, como as guerras e as mudanças climáticas, mas nós acadêmicos sabemos que a sua maior elaboração se deu por meio de uma economia excludente. Dito de outra forma, as causas econômicas respondem por grande parte da produção da pobreza em torno do globo.


Diante desta realidade, a pergunta então deveria ser outra: como fechar a porta de entrada à pobreza? Essa reflexão sim, irá nos retirar do senso comum, pois tem a capacidade de nos levar a outros critérios mais realistas, e, portanto, capazes de nos reorientar na superação da pobreza. Por quê? Porque, precisaremos elaborar novos mercados com menores impactos nas mudanças climáticas; precisaremos parar os conflitos bélicos, e sobretudo reinventar um novo modelo econômico com menor foco na produção capitalista, sob o qual depositamos todas as nossas fichas, e maior força na lógica da economia do cuidado da casa comum.


Quando me refiro à produção capitalista, não estou, obviamente, assumindo a inocência de um jovem incauto que acabou de ler o Manifesto Comunista. Isso é outra coisa que tentam associar a quem faz uma crítica séria. Refiro-me à lógica da produção e do consumo que avança sem limites sobre a ecologia, nega acesso e dignidade aos pobres, sequestra governos e tecnologias, e põe toda a sociedade de joelhos a serviço de seus interesses. Isso sem mencionar a cruel manipulação do orçamento público — por meio de isenções fiscais, financiamentos sem juros e até mesmo sonegação grosseira. Refiro-me, especialmente, à imposição do modelo de crescimento econômico ilimitado, um caminho insustentável ao longo do tempo.


Tudo alimenta e se retroalimenta no ódio ao pobre. Essa figura quase mítica desenhada pelos bancos das praças a dividir espaço com luxuosas vitrines, deixa a condição de miserável – aquele que merece misericórdia – para ser definido quase como um inimigo público. Como o estágio da pobreza acaba sendo uma vergonha coletiva, a pessoa nessa situação precisa ser evitada ao mesmo tempo em que se destila aquilo que a espanhola

Adela Cortina bem definiu como aporofobia1. Esse sentimento caracteriza uma comunidade que já não esconde seu “rechaço àqueles(as) que não tem condições de entregar nada em troca… Não possui nada a retornar.” Ele, não é só culpado por ser pobre, mas precisa ser eliminado.


Esse movimento é observado em várias frentes. Em São Paulo, por exemplo, ocorre com as pessoas vítimas da Cracolândia, ou com a criminalização do trabalho do Padre Júlio Lancellotti. No Rio de Janeiro, ocorre pela generalização dos moradores das favelas quando comparados aos criminosos do tráfico. Em Fortaleza, quando os moradores de rua são hostilizados pela grande elite na praça do Ferreira. No geral, a aporofobia se esconde na pergunta: qual é a saída? Quase como quem diz: quando nos livramos?


Ora, é de conhecimento de todos que a economia de viés capitalista forja conflitos para favorecer o mercado bélico. Inventa a inflação para elevar as taxas de juros. Inviabiliza o controle do Estado, rogando liberdade do mercado, quando a finalidade é o monopólio. Enfim, este modelo econômico de crescimento infinito na realidade é um réquiem da modernidade. Este, sim, é uma falsa utopia.


Ao contrário, precisamos de um novo modelo econômico. Este baseado no novo ciclo da produção do carbono, de um lado, e da universalização da cidadania do outro. Esticar esse pensamento aos seus limites, seria necessário até ser possível alcançar novamente a lógica da ética econômica nas nossas relações sociais. Um bom ponto de partida vem do pensamento do sociólogo Boaventura Sousa Santos2: “não precisamos de um desenvolvimento alternativo, mas de uma alternativa ao desenvolvimento.”


Os meus interlocutores vão querer me colocar no lugar comum afirmando que isso é utopia. E que outra economia é inviável. Possivelmente vão recorrer a velha frase de Margarethe Thatcher “the is not alternative” para me sentenciar. Mas, eu preciso lhes dizer: utopia, ou a ideia do lugar inexistente, é pisar no acelerador do carro desgovernado e sem cinto de segurança, chamado crescimento infinito.


Mas, voltando ao assunto central. É verdade que o estoque de pessoas em situação de pobreza extrema caiu acentuadamente ao longo do processo capitalista. É o que revela os números de Roser e Ortiz³, especialmente, após os anos de 1990. Mas, isso só foi possível graças a pelo menos dois fatores importantes: primeiro: o prolongamento da vida, devido a descoberta e o aperfeiçoamento dos antibióticos ao longo dos Séculos XIX e XX. Esse evento científico favoreceu a elevação da oferta da mão-de-obra. Mais tarde, por consequência houve a necessidade da formação de um amplo mercado consumidor, especialmente via distribuição direta de renda aos mais pobres. Na prática, era preciso que os capitalistas reduzissem seus custos de produção, ao mesmo tempo que criasse demanda às ofertas da elevada produção promovida pela revolução tecnológica.


Obvio que a criação de postos de trabalhos com direitos reconhecidos, foram importantes, em meados do Século XX, mas a velocidade das mudanças tecnológicas associada a ganância dos interesses das elites, somada a ausência de uma seria política educacional rapidamente inviabilizou o ciclo positivo da inclusão via posto formal de trabalho. No limite, reduziram a educação a sua função capacitação, esperando que cumprisse a mais completa formação humana. Ledo engano! Não há espaço para esse debate nessa secção, mas recomendo leitura ao belo trabalho de István Mészàros, especialmente na sua obra Educação para além do Capital.⁴ Justamente quando ele sustenta a urgência de uma “educação que forme para a vida, e não somente capacite para o mercado.”


Não obstante, para dar anuência a formação de mercado consumidor restou aos Estados a elaboração de políticas de distribuição de renda. Aqui entra proposta contida na abordagem socioeconômica da pobreza. Nesse sentido, o caso brasileiro foi exemplar primeiro com o programa Fome Zero; depois sua versão mais arrojada que conhecemos por Bolsa Família. Somente depois desta política vimos o estoque de pobreza ser reduzido drasticamente.

Com veem, não foi o mercado quem tratou de incluir as pessoas. Esse ser abstrato não sabe, ou não foi pensado para isso. Coube ao Estado a tarefa de reduzir substancialmente a pobreza. Contudo, como já dito, a inclusão se restringiu apenas ao mercado de consumo. Ainda que para isso fosse necessário elaborar um cinturão de proteção social como “saída à pobreza.” Apostou-se naquilo que conhecemos hoje por Estado de bem-estar Social. Avançou-se na ideia do crescimento real do salário mínimo.


Mas foi o acesso a saúde, a mobilidade, a educação, a seguridade e a renda básica e a mínima, que registraram os maiores impactos. Associado a tudo isso, a diplomacia mundial emplacou a política de não guerra – pensada imediatamente após a II Guerra Mundial, criando um caldo de oportunidades que fizeram a pobreza despencar.


Mas, ao longo da história tudo isso exigiu financiamento e presença de um Estado forte. Logo após as primeiras recuperações do pós-guerra, o mercado voltou a exigir sua “liberdade” tosca. Deu um nome a isso: chamou-o de neoliberalismo. Iniciou uma guerra de narrativas polarizadas entre capitalismo e comunismo, forjou um ambiente entre “nós contra eles” bem propício “de tudo ou o nada,” até finalmente estabelecer pela força bélica: a ditadura do capitalismo, escondida no ideário de liberdade. Na prática, jogou para baixo do tapete a acusação de que o liberalismo econômico produz pobreza.


Ora, no capitalismo se encontra tudo, menos a liberdade. Salvo para quem pode consumir. Se algum individuo não possui essa capacidade, então não há porque falar em liberdade. Um sujeito sem a liberdade de consumir é visto como um zero econômico. Não tem valor político, não acessa a necessária cidadania. Ele está inscrito na condição de indigente e não participa da vida social. No final, é encaminhado pelas estruturas a desfiliação social.

Com a cidadania negada, rapidamente o indivíduo vai mergulhar nas profundezas da pobreza, sendo atingido por seus tenebrosos ciclos de desigualdade, exclusão social e fome. Novamente é preciso sustentar que este processo guarda em si o perigoso potencial de provocar a desfiliação do tecido social, nos melhores termos apontados por Robert Castel5. E caso, a próxima geração emerja nesta realidade, então cria-se aquilo que tenho chamado de estoque prolongado de pessoas empobrecidas. Ou simplesmente: estoque de pobreza.


Para este grupo, o Estado manteve uma porção mínima de proteção. Mas o mercado quis interferir para que os pobres recebessem apenas o básico, tendo que custear todo o resto. Então, ficamos na distribuição de renda como elemento básico do acesso ao consumo. Não se pode esquecer que a lógica da inserção via consumo – sustentada pela escola americana se mostrou eficiente para evitar a fome, mas incompetente para evitar os outros ciclos da pobreza. Dito de outra forma, a distribuição de uma renda mínima pode evitar a apenas o ciclo mais profundo da pobreza: a fome. Logo, não foi pensada para enfrentar a exclusão social e a desigualdade.


Contudo, se o agente público criar um programa para alcançar os famintos, a pergunta sagaz sempre volta: qual é a porta de saída? Em geral, a resposta vem por meio de capacitação dos pobres para os pobres. Como que se num passe de mágica a pessoa em situação de pobreza estralasse os dedos e virasse um empreendedor de sucesso. Na verdade, isso não passa de uma individualização da responsabilidade. Quase como quem diz: “lhe dou alimento por um tempo, te ensino a fazer algo, e depois você se vira. Se voltar aqui, não tenho mais nada com isso. A culpa será sua”. Esse é o princípio da abordagem liberal da pobreza, cujo maior expoente foi o filosofo John Rawls.


Mas diante da nossa quadra histórica, vou insistir cada vez mais… ainda é hora de ampliar o cinturão de proteção social. No Ceará, por exemplo há séculos que o estoque da pobreza representa à terça parte da população. Hoje, segundo os dados do IPCE⁶, são mais de 4 milhões de pobres. Pouco mais de 700 mil deles estão na extrema pobreza. Apesar dos números elevados, é preciso dizer que estamos diante do melhor cenário político do ponto de vista do enfrentamento a pobreza.


Esse é um resultado claro da postura do Estado em suas várias ações, com destaque para o programa Ceará Sem Fome que alcança mais de 300 mil pessoas. Ou seja, o IPCE comprova, e nós concordamos que ainda estamos distantes da totalidade do seu público, mas já com relevante impacto no enfrentamento a pobreza extrema. Esse é o caminho. Finalmente, preciso responder que a porta de saída, é sair deste modelo econômico concentrador e espoliador das riquezas. A saída é parar de produzir pobreza. Achar que criar postos no mercado de trabalho seja suficiente para enfrentar a dura realidade, de certa forma, representa uma profunda ingenuidade, sobretudo com a emergência das novas tecnologias. Transformar o pobre em empreendedor de si mesmo, é de fato um erro crasso. Um cinismo estrutural.


A saída é mudar o modelo econômico de crescimento infinito, mais conhecido por capitalismo, o verdadeiro produtor da pobreza. Alguém topa?


Se não, a única porta de saída possível é fazer o caminho dos países de economias saudáveis, como Suécia, Noruega e Irlanda. Eles ampliaram o cinturão de proteção

social aos seus cidadãos. Radicalizaram o acesso a cidadania, até ser possível vê-la universal. De forma geral, isso exigiu reformas estruturais como reformulação da tabela do Imposto de Renda; novo modelo de tributação até alcançar as grandes fortunas; passou pelo ajuste da previdência, a regulação das redes sociais e fundamentalmente pela reforma política. Isso para não falar da universalização da saúde e da educação como elementos básicos.


Enquanto a realidade acima não se faz possível, resta-nos a saída possível, e a porta de saída a pobreza, no seu particular a fome, consiste em esticar ao máximo o alcance de programas como o Ceará Sem Fome, o Bolsa Família, a Proteção a Primeira Infância, a tal ponto ser possível universalizar a proteção social para as pessoas enviadas sistematicamente à pobreza.


Fonte: Rafael dos Santos, da Universidade Federal do Ceará – UFC, pelo Le Monde Diplomatique

Comments


banners niteroi que queremos NQQ TUNEL 300x250px 3 7 25.jpg
Ativo 4_2x.png

© 2023 | TODOS OS CONTEÚDOS DO RADAR TEMPO DE NOTÍCIA PODEM SER

REPRODUZIDOS DESDE QUE NÃO SEJAM ALTERADOS E QUE SE DÊEM OS DEVIDOS CRÉDITOS.

  • https://api.whatsapp.com/send?phone=552198035-5703
  • YouTube
  • Instagram
  • Facebook
bottom of page